Aprisionada
26 fev

Aprisionada

Blog, Coluna

Victor Tadeu

Estava presa há pouco mais de quarenta anos. Cercada por todos os lados por barragens que aprisionavam toda sua natureza. Não possuía sentimentos, mas se fosse capaz de sentir, sentiria raiva daqueles que a prenderam daquela maneira. Provavelmente aqueles homens também eram incapazes de sentir, remorso ao menos, não possuíam.
Então, quando surgiu a oportunidade, em um dia tão comum quanto qualquer outro não fosse o fato de um vislumbre de liberdade ter passado por sua tão estática existência, não pode mais se conter, e saiu.
Saiu pelas paredes que a confinavam sem dar qualquer importância para as consequências que aquele ato trariam. Afinal, que diferença faria à ela? Continuar trancafiada em sua imensa cela ou ganhar o mundo não era para ela muito diferente. Apenas saiu pois a oportunidade estava ali, na sua frente, e ela estava há tanto tempo naquela mesmice que deixou-se escapar.
Passou toda a imensidão de seu corpo pelos altos muros que tinham sido sua prisão por todos aqueles anos e ganhou as ruas a sua frente. Não se importou com as pessoas que estavam ali, centenas delas, apontando-lhe o dedo como se fosse uma grande monstruosidade. Sentiria vergonha se pudesse? Ou arrependimento por ter deixado seu berço? Mas não podia sentir, e mesmo que fosse capaz de algo tão… humano, de nada adiantaria. Não poderia voltar. Então apenas continuou seu trajeto, indiferente às pessoas que fugiam dela.
Continuou deslizando seu corpanzil molengo pela estrada de vida a sua frente, tragando para si tudo que encontrava. Pois não era isso que era? Um depósito? Não foi com esse intuito que fora criada e usada? Para que fosse despejado nela todos os resíduos indesejáveis? Não eram aqueles também resíduos? Ela não sabia a diferença. Apenas absorvia tudo e todos com a mesma intensidade e eficácia de sempre.
Absorvia. Trazia para si. Incorporava em seu próprio corpo para que fizessem parte dela. Se conhecesse a mitologia dos homens poderia se comparar ao rei que destruía tudo ao tocar. Mas dos homens, só conhecia a ganancia e isso ela não entendia. Seus dedos pegajosos tocavam e pegavam para si tudo que encontravam. Ao invés de ouro, no entanto, transformava-os em material bem mais comum…
Em pouco tempo estava livre. Feliz? Não. Não era feliz ou triste, apenas naturalmente, livre.
Quando enfim encontrou água, deleitou-se. Deitou toda sua imensidão nas águas do Paraopeba e se pudesse sentir prazer esse era o momento que o sentiria. Enquanto as águas do rio lhe penetravam a carne feita de lama e a diluía pouco a pouco, desfazendo-a de sua miserável existência.
Não podia ter dimensão do estrago imensurável que sua fuga trouxera, mas mesmo que pudesse, não se importaria. Se ao menos algum dos desumanos homens responsáveis por sua prisão estivessem ali, mas não estavam. Estes continuavam em seus palácios de ouro cercados de impenetráveis proteções, ela nunca os atingiria. Quem estava ali, por baixo de toda sua lama eram apenas pessoas comuns, animais comuns, plantas tão comuns que eram chamadas de nativas. Nada que merecesse um segundo olhar da fugitiva que já tinha os olhos longe no rio enquanto seu corpo começava a ressecar, prendendo para sempre aqueles que estavam em seu tortuoso caminho.
Mas ela não sentia por eles. Não era esse seu papel. Não era ela quem deveria sentir o que quer que fosse.

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